A incômoda situação de ter um jogo de Champions league prestes a acontecer a 14 km de onde estava e não poder ir já até havia passado, quando um diálogo na tarde de 25 de novembro se iniciou:
- Alejandro, recebeu meu e-mail? Disse eu
- Recebi, mas não pude responder!
- Mas, e aí, voce consegue comprar ingresso mais barato pro jogo?
(O jogo entre Villareal x Manchester United aconteceria neste dia, e o ingresso mais barato que havia encontrado tinha sido no valor de 100 Euros, mas Alejandro, um mexicano, é sócio do Villareal e pensei que talvez ele pudesse comprar para mim mais barato do que isso)
- Não, não consigo, mas... Meu filho está doente, e sempre vou com ele... Então eu também não vou hoje, vou deixar para ir na segunda fase, sendo assim, eu te dou meu cartão de sócio e você vai no meu lugar...
Bem, não é muito fácil para mim dizer o que senti nesta hora... Mas as palavras que o mexicano me falava soavam como o mais perfeito português, era capaz de entender qualquer coisa que ele dissesse mesmo que fosse um trava línguas dentre os mais difíceis de um longínquo pueblo de alguma antiga civilização Maia... Soava como a mais perfeita música, como uma orquestra perfeitamente afinada. Aquelas palavras eram tão fascinantes que quase vejo o mexicano com um batom vermelho, de cabelos compridos e com um sinal negro sobre o lábio superior.
- Agora você vai ter que sair antes da aula acabar, já que o jogo começa às 20:45 e a aula só acaba às 21:00...
Mal sabia ele que eu poderia deixar uma noiva no altar... Quanto mais uma professora...
Depois, ainda advertiu:
- vá bem agasalhado, lá faz muito frio!
Agradeci por avisar, porém não imaginava que mais tarde o estaria xingando
Segurei o cartão em minhas mãos e o coloquei em meu bolso como segurei a primeira nota de cem que vi na minha vida, quando tinha uns 15 anos (mas esta não foi pro meu bolso, infelizmente)
Agradeci com um sorriso que mal podia controlar e olhei para a professora, quando vi uma cena estranha, ela movia a boca sem parar, abria e fechava, gesticulava, mas não saia nem um som, olhava em volta e as pessoas prestavam atenção na aula e achei estranho ninguém comentar a súbita mudez da interlocutora.
De repente, a voz voltou, mas segui sem entender nada, e assim fiquei ate que as pessoas começaram a se levantar e formar grupos, era uma dinâmica... Aproveitei a brecha e disse ao mexicano que ia embora, passaria no apto para por uma roupa e pegar um dinheiro.
Pus duas calças, uma meia de Lá até o joelho, luvas, duas camisas (sendo uma de manga comprida, um agasalho e um casaco (deveria ter posto todos). Olhei o cartão como se fosse uma pedra preciosa, o virei para olhar o verso e lá estava escrito: “este cartão é pessoal e intransferível, podendo inclusive ser exigido o documento nacional de identidade para comprovar a titularidade nas entradas dos estádios”... virei de novo para olhar sua frente (que era bem mais interessante) engoli seco, o guardei no bolso e então marchei rumo à estação de trem.
La chegando, encontro vários grupos de ingleses, o trem sai e logo chega a Villa real, são 10 minutos de viagem. Ao parar na estação, alguns ingleses ameaçam não descer, pois não entendiam o anuncio: “próxima parada: Villa real” – que não entendessem o “próxima parada” vá lá, mas Villa real?? Um espanhol os adverte: “VILLAREAL”, aí sim, eles entendem... e no final, quem ficou sem entender fui eu.
Este mesmo espanhol foi a quem perguntei onde ficava o estádio e ele me disse que estava indo para lá e que poderia acompanhá-lo. Perfeito! Perguntei sobre trens de volta para Castellon e ele me disse que não haveria mais quando jogo acabasse, nem tampouco ônibus. Eu teria que pegar um taxi (cerca de 25 euros)... mas a volta não me preocupava, já diria meu amigo filósofo fumacinha: “pra voltar todo santo ajuda!” (e eu nem acredito em santos, mas se eles me ajudassem eu aceitaria).
Quanto mais nos aproximávamos do estádio mais se podia ouvir os gritos... Dos ingleses, os visitantes. Chegamos, o espanhol me indicou por onde entrar e nos despedimos. Procurei a entrada e fiquei observando algumas pessoas entrarem para ver como se passava o cartão, pois eu não podia deixar parecer que era a primeira vez que estava indo ali, não poderia ser sócio e estar indo pela primeira vez ao estádio e, portanto, desconhecer quais os procedimentos para entrar, pois já aconteceram vários jogos nesta temporada. E, caso desse algum problema e algum funcionário do clube viesse falar comigo alem de achar estranho desconhecer como se fazia para entrar ainda perceberiam o sotaque e daí para pedir o DNI era um pulo.
Comecei a imaginar as desculpas que poderia dar caso isto acontecesse. Pensei se diria que o titular tinha me emprestado (desta forma eu me livraria, talvez, e ele perderia os direitos de sócios), pensei em dizer que tinha achado o cartão (daí eu iria para alguma sala, em algum lugar do estádio ou seria mandado pra fora e o cartão ficaria recolhido), e por ultimo pensei em dizer que tinha pego de um amigo sem ele saber, e esta seria a pior de todas as desculpas, pois iria parar numa delegacia, sem passaporte e tendo cometido um furto, e logo depois num aeroporto, rumo à terra dos Marechais... Logo, esta foi descartada. Elegi a alternativa do meio como provável desculpa...
Observei duas ou três pessoas entrarem e lá fui eu em direção as catracas de entrada. Não era complicado, havia uma máquina com leitor de código de barras, era só posicionar o cartão embaixo, a luz verde acendia e você passava.
Pego o cartão, posiciono, espero...
E nada de luz verde... Viro de lado mexo o cartão... E nada de luz verde... Através da minha visão periférica, vejo uma mulher se aproximar, com uma roupa chamativa, cor verde-limao, característica de todos os profissionais da segurança, e da infra estrutura e controle urbano (incluindo policiais). Nem ousei virar o rosto e enquanto rezava para a tal luz verde aparecer, a mulher chega perto, e diz:
- Perdón...
Toma o cartão da minha mao, me olha no rosto (enquanto isso eu já me imagino falando pro Mexicano no dia seguinte: “recolheram teu cartão”, e isto, na melhor das hipóteses).
Aqueles segundos parecem ter durado mais do que os 90 e tantos minutos da partida
A tal funcionaria então passa o cartão pela catraca e, finalmente, a tal luzinha verde se acende...
- Podéis pasar
- Gracias!
...
El Madrigal. Este sim um belo estádio! Pequeno e aconchegante, com uma visão perfeita do campo, iluminação, acessos, espaços de circulação, gramado, arquibancadas, cadeiras, separações entre setores, tribunas... Tudo na mais absoluta perfeição... Só não é totalmente coberto, como recomenda a FIFA, mas do que importa? Se conselho fosse bom...
Observo cuidadosamente cada detalhe, cada som, cada manifestação... mal podia acreditar que estava em uma partida do campeonato de futebol de clubes mais importante do mundo, há quem diga que seja mais importante até do que copas do mundo de seleções, e dentro de certos aspectos, realmente o é.
Somente um aficionado por futebol e por toda a magia que o cerca pode entender o que senti.
Havia um certo burburinho que Cristiano Ronaldo, considerado atualmente como o melhor jogador do mundo, não iria jogar devido a uma suposta contusão... O clima fica tenso... não seria a mesma coisa... Mas não demora para o telão do estádio anunciar as escalações e acabar com as tensões que existiam neste sentido. Lá estava o nome do português.
Entram os jogadores do Manchester em campo e começa o desfile dos craques, dos milhões e milhões de euros que formam aquela constelação. Algum tempo depois entra o time da casa, mais modesto, mas também muito perigoso, e, neste momento começa a tocar uma música muito alta, provavelmente a mesma que toca em todas as entradas do Villareal e, acreditem se quiser, a musica era: “Olha a nega do cabelo duro, que não gosta de pentear...”. Em espanhol, claro, provavelmente a versão original da música que, agora descobria, era uma tradução para o português.
Depois deste espetáculo, me lembro do aviso do Mexicano sobre a questão do frio, e agora, sinto vontade de xingá-lo, pois ele disse que fazia muito frio, mas não que fazia muito, muito, mas muito frio! A arquibancada alta, somada às cadeiras descobertas e a um inconveniente vento perpendicular me expulsam para um bar, em busca de me esquentar um pouco, claro. A parte interna do estádio é menos fria.
Faltando 10 minutos para o jogo começar, volto para meu assento especifico, numero 63, fila 20. E neste meio tempo até o apito inicial já era anunciado que teria que conviver pelo menos por uma hora e meia com a minha já companheira tremedeira. E cada vez era mais frio, olhava para os lados em busca de auxilio, de um cachecol à venda, qualquer coisa! E no auge dos tremeliques, alguém bate no meu ombro e quando olho para trás estava a Deni (minha prima que já me salvou de vários apuros aqui no velho continente) me dizendo:
- Toma esta polar (um casaco muito grosso) Renan, num disse pra você trazer menino!
Não!
Era só uma alucinação hipotérmica, senão visual, imagística por certo.
O jogo está para começar, entram varias crianças para balançar a tradicional bola do tamanho do circulo central do campo, símbolo do campeonato que estava sendo disputado. Quando os times entram em campo, e surge no sistema de som a musica da Champions league, todos se erguem, batem palmas, e, neste momento, me arrepio dos pés à cabeça, e posso afirmar com toda a certeza do mundo: desta vez, não era de frio!
Os times se alinham, se cumprimentam, tiram fotos e começam a partida. O jogo é bom, muito movimentado, disputado e de altíssimo nível técnico, como não poderia deixar de ser. No intervalo, senti inveja de algumas crianças que brincavam com garrafas de plástico transformadas em bola. Gostaria muito de ter 8 anos de idade neste momento para poder correr e esquentar meu corpo sem parecer um maluco! Caminhei um pouco e pensei que correr sim, mas ficar subindo e descendo todos os lances de escada até o ultimo bar não seria tão estranho assim...
Entao, assim o fiz! Até a hora de voltar à minha cadeira.
O segundo tempo ia começar, e, confesso, se não fosse tão apaixonado por futebol e se aquele não fosse um momento tão especial para mim teria dito: “e lá vamos nós, para mais 45 minutos de sofrimento!”. O jogo continua num ritmo forte, no entanto, com as duas equipes já classificadas para a próxima fase falta um pouco de ímpeto em busca do gol, que chega, dos pés de Rooney, mas é anulado. Cristiano Ronaldo acerta uma bola no travessão, o Villareal tem bons ataques e um jogador expulso no final.
Enfim, termina 0 x 0, porém, o mais emocionante de todos que já vi. Senão pelo jogo em si, por toda a magia que estava agregada àquela experiência.
É hora de ir embora, só que: para onde? E... Como?
Pergunto para uns caras onde ficava a estação e se ainda havia algum trem para Castellon. O primeiro espanhol me aponta uma direção e diz que não sabe se ainda há trem, Os outros dois que estão com ele me apontam a direção contrária e garantem que não há mais trens, teria... que pegar um taxi!
Pego então a direção que os dois me indicaram e sigo em frente... Depois de vinte minutos de caminhada, já não tenho mais ninguém por perto, os carros se foram, as pessoas tomaram seus destinos e lá estava eu caminhando. Quando encontrava alguma alma na rua perguntava para ver se estava indo na direção correta, então me orientava. E seguia caminhando... Embora, neste momento já tivesse certeza que não estava indo para a mesma estação que cheguei, mas não importava... A única coisa que sabia é que não poderia ficar parado.
Dobrei numa esquina e encontrei um grupo de cinco ingleses que falavam e cantavam sem parar, num determinado ponto eles entraram num carro e se foram e eu continuava a andar. Estava caminhando numa cidade que nunca havia pisado, sem ninguém nas ruas, depois das 23:00hs, num pais estranho que não fala a minha língua, sem saber para onde, e pior: sem saber para quê! Já que não haveria mais trens. Juro que se houvesse alguma movimentação nas ruas, alguns bares teria passado a noite por lá mesmo... E de manhã, quando os trens voltassem eu voltava também. Mas não havia nada, um pé de gente...
Enfim, chego à estação, e intrigantemente era sim, a mesma da qual havia desembarcado na vinda... Só não entendia porque demorei 20 minutos para chegar ao estádio e uma hora para voltar... Se eu fosse como meu irmão, branco e dos olhos claros, seria capaz de apostar que os tais dois espanhóis lá de trás pensaram que eu era inglês e me sacanearam, mas isto também não importava, o protagonismo desta historia está longe de ser esta caminhada, afinal já estou acostumado.
Chegando à estação, agora sim, algumas dezenas de pessoas se encontram. Olho os horários dos trens e, realmente, não há mais, porém mesmo assim pergunto ao homem da bilheteria que me diz que ainda há um, ultimo, que sairia em menos de 5 minutos, provavelmente uma linha extra devido ao jogo.
Compro o bilhete, e vou esperar o salvador. Quando o trem chega, mais parecia que estava chegando a delegação do Manchester, pois os inúmeros ingleses acordaram e começaram a cantar “Manchester Lalalala, Manchester”...
O trem pára, e todos entramos...
Agora, rumo a Castellón no final de um dia especial...
Se me perguntam se tenho fotos... Do estádio, do campo, dos jogadores, dos prédios de Villareal, do trem, ou uma foto minha na frente do estádio com uma mao no bolso esquerdo e a outra fazendo o sinal da paz, ou um hangloose...
Respondo que não as tenho, pois não tenho maquina fotográfica...
...
Na verdade...
A tenho...
Pois tenho minhas mãos para me expressar através deste fantástico conjunto de signos criados pelo homem chamado de palavras...
E tenho a melhor de todas as máquinas de fazer fotos... A única que não falta a nenhum homem ou mulher independentemente do seu poder aquisitivo e do seu grau de instrução. Aquela que ajuda o homem a escrever a história e entender um pouco daquilo que foi, e daquilo que é. A única que tem espaço de gravação ilimitado e inapagável, a não ser com a morte (e há quem diga que nem com ela...)
Eu possuo a melhor de todas as máquinas, a que tira as melhores de todas as fotos:
A memória.
OBS: A história de largar a noiva foi brincadeira! hauahuah