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quinta-feira, 15 de maio de 2008

Deus escreve certo por linhas tortas?


Se as linhas estão tortas e mesmo assim ele consegue escrever certo não é a questão, a questão é: que texto ele escreve certo independentemente das linhas estarem tortas ou não? Eu sei, trata-se de uma metáfora, mas, suponhamos que existisse o tal texto, que texto seria esse? A história da humanidade sendo escrita por Deus?

Os anos ainda não eram contados, não existia relógio, ampulheta nem calendários. Canetas não existiam, bem, o homem também não. Mas o tempo, o tempo sim, este é tão velho quanto o criador, na verdade essa é uma afirmação que não se pode fazer com tanta segurança, assim como não se pode afirmar qual foi a primeira criação: o ovíparo ou o seu singelo primogênito.

Deus, sentado confortavelmente em uma simpática nuvenzinha, escrevia o texto que responderia todas as perguntas que os seres humanos iriam se fazer mais tarde. Não se sabe ao certo se as linhas eram realmente tortas, mas isso não vem ao caso.

O texto era grande, antecedeu a criação, seria uma espécie de “plano de trabalho” (sim, um plano de trabalho. Você não esperava que uma criação tão perfeita fosse fruto de um espasmo intelectual não é?) para que cada coisa fizesse sentido e que os homens não se sentissem perdidos em seu habitat.

Ele sabia que passaria alguns milhares de anos escrevendo o tal documento, mas não imaginava a batalha que teria que travar para que este chegasse ao conhecimento dos seus filhos criados à sua imagem e semelhança.

Conforme as palavras eram escritas, as linhas (que extrapolariam qualquer margem de papel imaginável) se mostravam e o corpo do texto se desenvolvia, o tempo (dono da paciência mais admirável entre os seres), sorrateiramente tratava de apagar a mensagem original. Vagarosamente como ele sempre o faz, mas de forma ininterrupta.

Ao perceber a ação do tempo, o sábio escritor astutamente ordenou que as palavras se jogassem, em nome de suas vidas, para a linha imediatamente acima da que estavam ocupando, dessa forma quando o tempo apagasse a décima terceira linha, por exemplo, esta já teria o seu conteúdo passado ao vazio da décima segunda linha que por sua vez teria seu conteúdo na décima primeira e assim sucessivamente.

O texto, no final, teria seu conteúdo intacto. No entanto a primeira linha... Esta jamais seria a primeira, ela seria na verdade a segunda. Seguindo a ação do tempo com a atitude das palavras o texto de, suponhamos, vinte linhas, ao final teria certamente apenas dezenove. A última seria efetivamente a última, a penúltima seria a penúltima, mas a primeira...

A primeira linha jamais seria recuperada, a segunda jamais explicaria absolutamente aquilo que ela quis dizer, a última jamais encerraria o conjunto e o texto perderia então a sua estabilidade. Algumas perguntas jamais seriam respondidas.

A instabilidade do documento deu origem à metafísica* e a todas as incógnitas que permeiam a atmosfera terráquea, se dissipando em algum corpo celeste a alguns “megaparsecs”* de distância de nós.

O texto que Deus escreveu para contar aos homens todos os segredos do universo teve a sua primeira linha apagada pelo tempo!


* Megaparsec – Unidade de medida referente a um milhão de parsecs, ou seja 3.260.000 anos-luz.

* Metafísica - Segundo Aristóteles: Estudo do ser enquanto ser e especulação em torno dos primeiros princípios e causas primeiras do ser.

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